terça-feira, 28 de março de 2017

A grande noite do deserto _ Maria Azenha

A Tentação de Santo Antão _ Salvador Dali

A grande noite do deserto

Um segundo é suficiente para saltar fora
Ou ir à Gulbenkian ver o Almada ,o Lorca, o Cesariny
Tocar o anjo maldito da Memória
E abrir uma brecha nos viveiros do Poder.
Estou farta de corruptos,de cibernéticos, de tecnocratas
do Amor encontrado em marinheiros de fogo, em narcóticos democráticos
de ficheiros encriptados
no Medo,
no Terror!
Há Inaugurações de montras  com Montanhas ao pescoço,
e ar condicionado em gabinetes altamente presos,
e toda esta loucura procurando crianças e alfinetes em bombas.
Os núncios apostólicos do globo olham o mundo
através de sargetas, de swings de estrume com flores,
de ficheiros anónimos, de trapézios, de bonecos encriptados
que bebem copos e dançam com mulheres em noites seráficas.
Nietzsche pede socorro a todos os poetas torturados pela realidade!
Há um tratado alquimista escondido nos bolsos dos robots.
Há milhões de versos por fazer enrolados em mochilas de Rimbaud.
As epopeias do século XXI vertem enxofre e ouro.
Milhares de Criaturas saem do nada. Ocupam postos de trabalho em tigelas embotadas.
Seus olhos muito abertos e muito cerrados
Voltam-se para a direita e para a esquerda.
Dormem à hora programada com leite encriptado no telemóvel.
É preciso sacar unhas ao globo para compor música atómica!
Ele é uma metralhadora instalada em toda a parte. Em qualquer lugar.
Comemos carne e peixe ao almoço em grandes contentores,
Mastigamos bifes sintéticos, palitos de la Reine com aplicações nos semáforos.
É urgente gritar  contra a violência das cidades,
Puxar galáxias para baixo em estado de graça.
Minha alma precisa de encontrar uma árvore a sério
e com ela treinar os pulmões a cores.
Estou farta de genuflexões bondosas,de senhores da misericórdia,
de anjos com asas anunciando esperança e amor!
Sou da estirpe dos pobres, dos afogados, dos que sofrem calados,
dos biliões de vozes sem nome…
Isto é terrorismo em arranha-céus de dor!,
Terrorismo que reduz o indivíduo a um bocado de caca.
Os computadores atravessam o Tejo e outros rios da Terra,
Anunciam viagens de escravos de um lado para o outro.
São grandes transatlânticos do sofrimento em ferro, grandes filmes do crime
com pessoas que já não conhecem sonhos…
E vivem em grandes explosões demográficas.
Mozart caiu cedo demais na vala. Estava fora do século.
Há praças que se transverteram em campos-santos de gente anónima,
bandos metralhados por ordens  a qualquer dia e hora.
Em qualquer ponto do espaço as unhas dos astros ferraram-se no solo .
Vieram com Baudelaire para anunciar a catástrofe.
Vivemos em conglomerados de cidades embalsamadas em gelo e dor:
Múmias sempiternas com suas fardas de cimento, obedientemente cegas.
O século escreve o novo livro da história:
“A grande noite do deserto”


©maria azenha

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Um poema arrasador, brutal, altamente subversivo para o sistema das castas e para a nossa civilização carnavalesca e que ultrapassa todas as fronteiras poéticas, para se erguer como um violento e incisivo manifesto panfletário, capaz de corroer as torres de marfim do poder.
Alexandre de Castro
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Os melhores de 2016: poesia

Dezembro 29, 2016

A casa de ler no escuro, de Maria Azenha

A poesia dessa portuguesa de Coimbra chegou-me através da organização de uma das edições do caderno-revista 7 fases. E, depois, aconteceu de ler este livro editado no Brasil. Trata.se de uma poesia com dicção muito individual e atenta às imagens do mundo social. Numa conjuntura em que esse universo nos parece cruel, perigoso e uma prova definitiva de que o homem tem (an)dado errado no mundo, é possível ainda extrair, do acaso ou das situações mais invisíveis algum alento para o fim. A estética de Maria Azenha cumpre esse papel de ser uma lufada de ar numa existência árida.

In LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO

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O livro de poemas, de Maria Azenha, A casa de ler no escuro, (editora Urutau), foi incluído, pela revista LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO, na lista dos dez melhores livros de poesia, publicados no Brasil, em 2016.
Tive a honra de ter sido convidado pela autora a deixar um pequeno apontamento no respectivo prefácio, assim como receber das suas mãos um exemplar, com uma simpática dedicatória.
2017 03 28

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